Vielas paralelas
Visitar alguém pressupõem conhecer, querer estar juntos, ter algo em comum. Assim, lá fomos à casa modesta. É num daqueles sítios que ninguém vê, a não ser que vá à procura dele, mesmo, e com a intenção clara de o encontrar, foi assim que fizemos. A sujidade é daquele tom encardido, aquele que a peúga preta confere à roupa branca. Estava à nossa espera, o chão ainda húmido denuncia que a esfregona não o deixou há muito tempo. O nosso telefonema anterior deu com certeza esse mote.
Abrem-nos a porta e ao entrar deparo-me com o cenário. Aquele cenário que me atrai de maneira inexplicável. Aquele tudo a ver nada a ver. São gatos de loiça, móveis desemparelhados que já perderam parte substancial no seu percurso de vida, há lençóis que são portas e janelas que não o são.
Há um amigo da casa, um velho conhecido nosso destas e de outras andanças, cumprimentamo-nos com a certeza que ambos sabemos quem somos e o que nos traz ali.
A conversa começa com mais perguntas que repostas, os bebés estão bem, o resto não tanto.
Hesita-se no que toca a quem dorme onde. Hesita-se quando se fala do que não está bem. Hesita-se quando se fala na necessidade de limites na relação com os filhos, nas rotinas. O porquê desses limites soa a estranho quando não existem limites na relação de casal. A relação parental e a vinculação como compensação. Os filhos, o ouro dos pobres.
Há comida, há pessoas, muitas pessoas que não param de entrar. Há poucos dentes, e menos ainda se só considerarmos os brancos, há tabaco e banhos escassos. Não há casa de banho. O discurso é também pouco limpo, com poucos avanços e muitos recuos.
Assim entramos, assim saímos, talvez não tenha sido tão assim. Não sei se lá ficou um pouco de mim, mas certamente que veio um pouco deles comigo.
O que me atrai é mesmo esse estar com e para o outro, ver o que o outro vê, compreender, ou mais próximo disso, as estruturas de pensamento de quem por alguma razão vive nessas vielas paralelas de vida. Essas que cruzam a lei, essas que tocam os limites do que hoje se considera imperativo para os menores. É essa procura do outro, daqueles outros, nos limites que me leva aos limites. Procuro esses limites para os mudar.