Um gesto mil vezes repetido

Uma coisa que tenho dificuldade de fazer é explicar o que faço profissionalmente. Tenho uma resposta tipo, simples, como devem ser as respostas tipo. Mas quando penso verdadeiramente no que é o meu trabalho surge uma dificuldade hercúlea na escolha das palavras, nenhuma parece servir verdadeiramente o propósito.
Algumas ideias que podem ajudar são: trabalhar na primeira linha, no direto com crianças e jovens defendendo direitos e promovendo o cumprimento dos deveres destes. Sem vaidade, sem qualquer pingo de autoelogio, geralmente são dias de refazer o que já foi feito, e correr sempre atrás de um prejuízo irrecuperável.
Nesta loucura diária é condição essencial relacionar-me, dar-me, deixar-me tocar pelas pessoas com quem trabalho. Ter paciência infinita e uma insistência que só termina com o anular de matrícula após os 18 anos ou a conclusão de 9.º ano de escolaridade. Afinal na vida portuguesa há três coisas certas: a morte, os impostos e a escola até aos 18 anos. No que toca à terceira, sei que há muito quem discorde mas não me ocorre uma maneira melhor de gastar os nosso primeiros anos, embora muito longe da perfeição.
Este trabalho só é suportável porque tem no seu horizonte a ideia longínqua, mas alcançável, de contribuir para que todos os alunos se tornem adultos honestos e com um projeto de vida que, por vezes, os faça muito felizes.
O pior é que nem sempre isto acontece, às vezes é o crime que não deixa.
No último ano é meio sofri dois duros golpes que me levam a repensar quem sou, onde estou e como poderei continuar. Atenção, não estou a atirar a toalha ao chão, lembram-se que eu disse que era insistente, e geralmente sou insistente muito além do razoável, só para se saberem com o que contar. E não me orgulho disso, já que não me traz mais alegrias que sofrimento.
Falava eu dos duros golpes: um foi uma detenção de um aluno, com julgamento em praça pública pela comunicação social e por todos os que desconhecendo julgam. Eu às vezes também embarco nisto; O outro puxar de tapete é recente e bem pior, uma morte. Sim, a morte de um menino na flor da idade por outro menino na flor da idade que escolherem estar num confronto de gangs numa tarde de férias, num Algarve solarengo.
Muita coisa falhou para que esta escolha acontecesse. Eu estou entre os que falharam, pois durante 10 anos o acompanhei, durante 10 anos procurei fazer da escola ninho e da saída do ninho um voo seguro. Quando parecia ter conseguido sou tolhida por este golpe. A mão no ombro deste menino foi um gesto mil vezes repetido.